segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A seleção brasileira do Brasil


Braços cruzados, cabelos negros com gel penteados para trás, óculos e um cavanhaque denso. Ele acompanha a bateria de exercícios à beira da quadra e os gritos de Ariel Mendes, o sempre insatisfeito preparador físico. O nome dele não é Dunga, mas a seleção é brasileira.

Em uma manhã indecisa de outubro, entre o sol e a chuva, Rodrigo ainda sonhava. Duas semanas depois, acordou para ouvir más notícias. Sentado na outra ponta da gangorra, Bruno está tentando juntar dinheiro para trazer alguma lembrancinha da Austrália. Em comum, os dois têm Deus como ídolo.

Às 11h15 do dia quatro de outubro, começa o treino físico do Brasil. A Granja Comary não é ali, portanto, apenas resta negociar. Após problemas burocráticos impedirem o ingresso nas dependências do campus centro da Anhembi-Morumbi, a delegação nacional segue em comboio para um complexo esportivo sob o Viaduto Alcântara Machado, na zona leste paulistana, a cinco minutos da faculdade.

São quatro quadras, duas de grama artificial (society) e duas de futebol de salão. Uma lousa pendurada em um dos pilares do viaduto mostra os times que fizeram reserva e os horários em que as utilizarão. O esquadrão de Nego Bill está presente na Society I às quintas, das 21h30 às 23h30.

Banheiros químicos, mesas de pingue-pongue, de pebolim e de cimento, sobre a qual adultos jogam dominó, complementam a decoração do espaço público revitalizado pela prefeitura, mas pelo qual se paga para jogar, da mesma forma que em qualquer campo particular. A taxa é de R$ 150 por mês.

Felizmente, as pessoas ainda respeitam a pátria de tênis e Célio Andrade, o caseiro do lugar, cedeu sem ônus uma das quadras para a equipe canarinho. Justamente aquela que reserva na mureta da entrada uma sábia frase escrita quando o cimento ainda estava fresco: “Jesus e u camio i a vedade i a vida”.

Andrade é quem arrecada o dinheiro “utilizado para a manutenção e limpeza”, segundo afirma, e abre e fecha os portões de ferro que cercam o espaço. Outros dois homens fazem a segurança durante a madrugada e mantém o antigo estacionamento de carros e ônibus livre de invasões.

Enquanto os locatários com coletes coloridos utilizam os campos de piso sintético, o escrete brasileiro saltita e trota no piso de cimento, próximo ao povo. Após alongamento e corrida, 11 jogadores em linha pulam sobre seis bolas pequenas. A maioria veste camisa verde escuro com uma faixa ondular verde fluorescente, que nasce no ombro direito e vai até a axila esquerda. O uniforme inclui ainda calções cinza e meias brancas.

Mas, esse não é o traje oficial e sim a roupa de treino da última copa. “A Nike ainda não mandou o uniforme deste ano”, comenta Flávio Fernandes Rodrigues, o Pupo, apelido pelo qual é conhecido o técnico da seleção brasileira de futebol de rua. Além da marca de material esportivo, a faculdade Anhembi-Morumbi e o Corinthians apóiam a equipe. A primeira oferece local para treinamento e acompanhamento psicológico, enquanto o segundo entra com alojamento e a estrutura física para a fase final de preparação.

De 01 a 07 de dezembro, oito atletas disputarão em Melbourne, capital da Austrália, a sétima edição da Copa do Mundo de Futebol de Rua. Em 2009, a competição acontecerá na Itália e em 2010, pela primeira vez, na América do Sul. O Brasil concorre com a Argentina e o Chile para sediar o torneio daqui a dois anos.

Três na linha e um no gol formam o time que pode incluir homens e mulheres a partir de 16 anos. Os jogos acontecem em quadras com piso semelhante a piche, para fazer referência às ruas, e a arena é cercada por um material semelhante a tapume

Em dois tempos de sete minutos, os jogadores precisam balançar as redes dos gols com 1,20 m de altura por 4 m de comprimento. Não há juiz e o empate leva a partida para os pênaltis

A partir dessas características, Pupo buscou dois alas técnicos, um goleiro veloz e um fixo que chuta bem. Entretanto, os requisitos técnicos não são os mais relevantes. A Organização Civil de Ação Social (OCAS), responsável por escolher os jogadores no Brasil, priorizou jovens entre 16 e 19 anos em situação de risco. Dos 90 garotos ligados a entidades assistenciais de comunidades carentes de São Paulo e de São Roque, restaram 11 nomes escolhidos em uma seletiva. Desses, oito ficaram.

Bruno nasceu em Heliópolis, mas agora vive na Vila Moraes, bairro próximo ao Ipiranga. Em toda a breve carreira, enfrentou cerca de cinco peneiras e é apontado por Pupo como um dos destaques do time. A mãe o cobra para que se dedique ao futebol e o padrasto o apóia Atlética Artmanha, gue trabalha com jovens da comunidade onde viveu até a pré-adolescência. Depois, jogou no Palmeiras. Porém, não ficou muito tempo. “O cara que me indicou não era muito forte”, comenta. A seguir, atuou em um Centro de Treinamento do Juventude de Caxias do Sul, em São Paulo, até o projeto ser extinto. Seu último clube foi a Portuguesa, do qual saiu após torcer o tornozelo antes de assinar o contrato.

Magro, andar gingado e panca de jogador, parece compreender os ensinamentos pragmáticos do futebol moderno. “Prefiro não inventar, fazer o básico”. De segunda, quarta e sexta, aprimora o preparo físico com um professor de educação física em Santo Amaro. Às terças e quintas, trabalha com bola na Denilshow, em Diadema, escola de futebol do jogador Denílson, ex-São Paulo, atual Palmeiras. Tudo de graça.

Para se distrair, o garoto evangélico vai à Igreja. “Eu me divirto com Deus”. Quando questiono sobre o planejamento para o caso de não ser escolhido, logo interrompe. “Eu vou ser escolhido, tenho fé”. E continua. “Espero abrir portas. Ter essa oportunidade é o que muitos jovens da periferia gostariam”.

Pela primeira vez, a OCAS prepara um time sem vendedores de revista. Com sete anos de vida, a entidade surgiu para editar uma publicação homônima. A Revista OCAS é vendida em São Paulo e no Rio de Janeiro por pessoas em situação de rua ao preço de R$ 3. Deste valor, R$ 2 ficam com o vendedor. “Nosso objetivo é resgatar a auto-estima oferecendo renda, cultura e interação com o público”, afirma Guilherme Araújo, presidente da Organização.

A Copa do Mundo de Futebol de Rua foi criada em 2003 pela Rede Internacional de Publicações de Rua (INSP), da qual a OCAS faz parte. A idéia inicial era utilizar o futebol para aumentar a visibilidade das revistas em todo o mundo. Em 2008, uma outra possibilidade entrou em jogo: oferecer alternativas a jovens por meio do esporte. De quebra, o Brasil aumenta a chance de surpreender potências como Portugal, Rússia, Escócia e, principalmente, os países africanos, e de melhorar a colocação em relação às últimas edições. O melhor resultado foi um quarto lugar na Áustria, em 2003. No ano passado, a equipe brasileira chegou em 22.º lugar.

Anderson perdeu a oportunidade de prosseguir no grupo devido ao compromisso com o exército e o conseqüente excesso de faltas. Ricardo sobrou pelo fator social: era superior na capacidade e inferior na necessidade. Já Rodrigo Santos, 20 anos, o mais velho entre os 11 na penúltima etapa da avaliação, preencheu todos os pré-requisitos: desempregado, mora em Paraisópolis, segunda maior comunidade da cidade de São Paulo, ao lado da mãe, da irmã, e da filha de uma outra irmã.

Pele morena queimada pelo sol, jeito introvertido, cabelos curtos do lado e mais altos na parte de cima, ele joga como fixo. Aos 15 anos, ingressou no primeiro time, o Real Paraisópolis. Aos 16, passou a fazer parte do Pequeninos do Jockey, e dois anos depois, realizou um desejo de infância: passou a treinar no Corinthians, pelo qual torce.

Tudo ia bem até a mãe, único salário da casa, ser demitida. A falta de trabalho provocou o corte da verba para duas conduções: valor de ida ao clube e de volta para casa. Estrategicamente, passava por baixo da catraca do ônibus Pinheiros e pagava para viajar no Rio Pequeno. Na volta, era o Canto do Rio quem colaborava com a manutenção do sonho do então meio-campista. Os últimos três anos foram de jogos na periferia, especialmente na Associação Comunitária Cultural, Educacional e Esportiva Renato 11 e Amigos, em Paraisópolis.

Rodrigo tem um “plano B”, no qual não quer acreditar. “Um cara de 20 anos dentro de casa é vagabundo, né. A mãe cobra e diz que nessa idade depender só dela é ruim. A OCAS é a última chance”, afirma, antes de conhecer a lista de aprovados. Essa será a sua última peneira. A chance, como lembrou à mãe, de mudar a própria vida e a da família. Caso não consiga passar, garante que São Paulo conhecerá um especialista no segmento elétrico automotivo.

No sábado em que nossa reportagem acompanhou a seleção, Rodrigo acordou às 06h30. Normalmente, levanta entre meio-dia e uma da tarde. Saiu de casa às 07h47 e embarcou no ônibus Largo São Francisco. Jamilton Jesus Oliveira, o “China”, responsável pela Renato 11 e Amigos, ajudou com o valor da passagem. Na estação Sé do metrô, pegou uma carona até a Anhembi-Morumbi, ponto de encontro da equipe. Vestiu um par de chuteiras cinza gastas e sujas, com detalhes azuis desaparecendo. Correu como os outros e imaginou que, enfim, os joelhos marcados por quedas no campo e cravos de chuteiras adversárias poderiam estar no caminho certo para conhecer o profissionalismo.

Uma semana após nos conhecermos, mesmo sem título de eleitor e sem certificado de reservista, Rodrigo conversou com Guilherme e ouviu do presidente da OCAS que deveria se apresentar, que dariam um jeito nisso. Estava de malas prontas quando recebeu um golpe fatal. A tia estava muito doente no hospital.

Ela faleceu. Ele resolveu descartar o campeonato, a viagem, as quatro linhas. “Pretendo parar com o futebol”, lamenta. Não sem antes deixar uma ressalva. “Mas, se pintar alguma oportunidade...”

Quando a Copa acabar, Lucas Teixeira, Anderson de França, Denis Strutz, Eduardo Silva, Diego Emanuel, Carlos Santos, Roberto Silva e Adeilton Bruno da Silva voltarão para as comunidades das quais saíram, afastadas do centro de São Paulo. Unânime é o desejo de retornar com uma boa notícia: um bom contato ou um vultoso contrato assinado com algum time. Grande, de preferência, mas nem precisa ser do coração.

A voluntária comissão técnica, formada pelo técnico Pupo e um representante da Ocas, ainda não conseguiu patrocinadores para embarcar a delegação em direção ao Novíssimo Mundo. Mesmo assim, não duvida que colocará os pés na Austrália. Brasileiro não desiste nunca, especialmente a seleção brasileira do Brasil.

Escrito por Luiz Carvalho
www.anonimatosa.com

Um comentário:

Anônimo disse...

Pupo, aprendemos nessa vida que nada é por acaso. Temos os nossos momentos...temos que respeitar-los e nunca desanimar. O caminho é esse, lute pelo seus ideais e nunca deixe de sonhar, mas sonhe com os "dois" pés no chão.
Sucesso,Sorte e Felicidade sempre...
Beijos
Simone Vecchi - Sorocaba/SP